sábado, 29 de novembro de 2008

NÓIS NA AREIA

Um mineiro na praia sempre foi algo meio atípico, nós que nos furtamos da graça de possuir um litoral. Mas também seria demais, se além de nossas montanhas pudéssemos contar com a beleza de um litoral, iríamos arrebentar! Mas se a praia não vem até nós, nós vamos até a praia, os capixabas que o digam. Mas tem mineiro mais insolente que alem de freqüentar praia com mais status acaba estabelecendo nelas seus marcos. Essa proeza, somente podem fazê-la aqueles que possuem um espírito das montanhas que os torna capazes de, diante das praias, apreciar sua beleza, encantar com seus encantos e fazer delas santuários hedonistas sem se render a elas, sem permitir que elas os invada, que alcancem sua profundidade. Ao contrário, às vezes sem destemor, nós é que invadimos (intra-extra literalidade) a praia dos outros.
Grande exemplo disso é o caso do mineirim, o nosso Drummond que tanto invadiu Copacabana que por lá ficou como estátua sendo observado pela praia. Eternamente, se os desafetos ou invejosos da poesia assim o permitirem. Coincidência ou não, nos sete anos em que a estátua de Drummond está na praia de Copacabana, já foi sete vezes depredada, desta vez levaram a haste direita dos óculos do poeta, talvez numa expectativa de que ele, meio míope, não pudesse se apoderar daquelas belezas que apenas ele conseguia ver entre as trivialidades cotidianas. Talvez creiam esses vândalos que a lente de Drummond estivesse nos óculos, ou talvez seja até um sinal de respeito-despeito de que o danado do Drummond, mesmo no bronze e de costas possa ver Copacabana como poucos cariocas conseguem.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O DONO DO NEGÓCIO

É incrível como a gente ainda se surpreende com um bom atendimento, mesmo sabendo que isso deveria ser uma obrigação de quem atende. Isso me ocorreu recentemente. Estava passando próximo a uma casa loteria e resolvi dar uma chance à sorte. Entrei com o propósito de fazer uma “surpresinha” da megasena. Jogo que faço eventualmente, sempre o da mega, por razões que reportam a resquícios de uma falha nos recalques narcísicos.

Lá estava eu frente ao caixa, uma senhora com sorriso simpático me atende olhando através do vidro transparente do guichê. Solicito meu jogo. Ela puxa conversa fazendo um comentário que me passa despercebido, mas que me faz voltar para ela. Ela me oferece outro jogo que estava com prêmio acumulado, segundo ela, e que seria apenas alguns centavos a mais, era mais uma oportunidade para minha sorte. Concordo com ela e aceito. Em seguida comento ser ela muito boa vendedora, ela agradece gentilmente e diz que esse é seu trabalho, a desenvoltura e a simplicidade dela me surpreendem positivamente. Ela astutamente (não um astuto ostensivo, mas discreto e convidante) percebe meu interesse e comenta existirem mais dois outros tipos de jogos que estavam acumulados com sorteio para essa semana. Finjo não ouvir o comentário dela e pergunto quanto havia ficado minha conta, ela comenta rapidamente o valor como se tentasse passar por esse assunto rapidamente (e o faz com maestria) sem se ater a ele e sem deixar de me dar uma satisfação. Insiste cordialmente que aquela poderia ser minha semana de sorte e que por mais alguns trocados registraria outros cartões para mim. Comento ser ela muito hábil em convencer as pessoas. Fazia isso sem causar aquela típica antipatia de vendedores insistentes. Pergunto o obvio, com uma ingenuidade dos ignorantes se ela gostava de seu trabalho. Ela responde que sim, mas que era dona do negócio. É mesmo? Retruco plácidamente elaborando uma expressão de surpresa. É - ela responde – “a gente tenta passar isso para os outros, mas não consegue” (se referindo à forma de atender). Entre esse papo que vai e vem, saí da loja com vários jogos que não tinha a menor intenção de comprar. Sabia que tinha sido "usado e abusado" pela gentil senhora e mesmo assim... estava satisfeito. Como pode? Mesmo sabendo se tratar de uma das mais antigas técnicas de vendas, a venda adicional, eu caíra na "armadilha", com muita satisfação. Saí feliz por ter encontrado uma pessoa educada, cordial e competente e o que ela fez? Aquilo que deveríamos fazer todo o tempo naturalmente: respeitar as pessoas, fazê-las se sentirem bem e daí, até ter o direito de explorar um pouquinho, como a senhora fez comigo.

É claro que sempre que puder irei lá, com ela, fazer a minha fezinha, pegarei fila se for preciso mesmo que outro atendente esteja desocupado, estou certo que esse tempo que gastarei a mais será recompensado por uma gentileza gratuita. Enquanto ela me cobra pelos jogos que registra eu pago principalmente pelo seu cordial atendimento.

Que negócio é esse de ser dono daquilo que faz?

O SUPER EU

Há descobertas que nos assombram por serem tão contraditórias a nosso ideal de ego, mas não tanto quanto o encobrimento, a ocultação de desejos obscuros que carregamos sem qualquer percepção sobre eles e que mesmo assim pairam sobre nós como sombra sorrateira que direciona nossos comportamentos e nossa maneira de nos posicionar sobre a vida e com o outro.

Fiz descobertas assim sobre mim que sempre construí um ideal de ego democrático, justo, conciliador e respeitador das diferenças entre as pessoas. Entretanto, descobri em mim uma megalomania totalitária e déspota, um desejo sinistramente oculto de dominar e controlar as pessoas.

Lembro-me de Chaplin em o "todo poderoso", em que, numa caricatura de Hitler tripudiava a manifestação egocêntrica e dominadora de um tirano que se via maior e mais capaz que todos os demais e por isso, com justiça, tinha o direito de dominar o mundo e nele cada pessoa, cada indivíduo-objeto.

Essa idéia de indivíduo-objeto decorre de uma contraposição ao sujeito, à subjetividade à manifestação singular de cada um. O indivíduo-objeto não possui direitos que não decorram das benesses daqueles "seres superiores" que se julgam capazes e no suposto direito/dever de controlar a vida dos outros.

Descobri haver em mim um desses seres, um Hitler disfarçado, com vestes de justiça, de bem querer, de produtividade in-decorrentes do liberalismo. Esse meu engodo, transvertido de boa vontade e até de altruísmo. Sob a bandeira da equidade existia em mim uma vontade que todos a meu redor comungassem com meus propósitos de auto-desenvolvimento.

Nessa idealização do outro pensava em seres que enxergassem, como eu, a importância de pequenas coisas como não jogar papel de bala no chão, não usar palito de dentes na frente dos outros, assumir a responsabilidades pelos erros, fosse cordial, cumprimentasse os outros com um aperto de mão firme, olhasse nos olhos das pessoas enquanto falassem, limpassem os pés ao entrar em casa, qualquer casa, que oferecessem de coração um copo d'água e um cafezinho só pra outra pessoa se sentir bem, que cedesse a vez para o motorista que deseja sair do estacionamento ou para o pedestre que precisa atravessar a rua, que respeitasse as crianças e os mais velhos não como um dever, mas como um prazer de ver a esperança de crescer da criança e a sabedoria e experiência dos mais velhos. Que os sorrisos fossem discretos e sinceros, medidas de bem querer e gratuita cortesia. Nos desejos ditatoriais de meu ego oculto existia a vontade de forçar todos a amarem o trabalho e reconhecerem nele uma oportunidade de construção de si próprios e de redenção de seus espíritos.

Que belos desejos, podem parecer. Talvez o próprio Hitler os tivesse tido, a grande questão é que não podem à revelia de cada um, serem impingidos de forma arbitrária, ninguém tem direito nem poder legítimo para isso.

Pergunto-me, além dessas idealizações, o que é possível fazer sem cair no estigma do déspota esclarecido de um Luiz francês. As respostas que consigo, ainda sob o torpor desse reconhecimento particular, se limitam à educação e ajuda. Podemos procurar educar e ajudar nossos filhos, nossos jovens, nossos subordinados e outros, mas com uma ressalva cruel aos pretendentes a educadores e ajudadores: somente se educa e ajuda aqueles dispostos a isso. Somente é possível acontecer tanto educação quanto ajuda, com consentimento e desejo dos educados e ajudados, é claro que nesse suposto confronto cabe convencimento, esse sim legítimo, mesmo que persuasivo, mas jamais coercitivo.

Não me é fácil reconhecer esses sentimentos sorrateiros e facistas em minha personalidade. Maquiavélicos, por sinal, esses desejos ainda me habitam, não tão obscuramente como o faziam. Esse véu que se descortina os intimida, mas não os expulsa, não os subtraem de mim. Estão reclusos, mas atentos ao meu descuido. Orai e vigiai! Tem um grande sentido. Não me vejo imune a recaídas, mas me vejo capaz de percebê-las, mesmo agora, nesse instante, um flash de pensamento perverso me acomete: que vontade abrir a cabeça de alguns e colocar valores decentes e úteis lá dentro.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

DENTRO DE MIN-AS

Sempre abominei o ufanismo, centrar-se sobre supostas glórias de um território sempre me pareceu pequeno, muito condescendente, e contrário ao sentimento de colocar-nos a todos dentro de uma raça, a humana. Mesmo mantendo essa posição devo render-me a algumas coisas que podem ser exclusivamente inerentes a um povo ou lugar. Com isso constato que os lugares causam algumas características a seu povo e essas características acabam por tornarem-se verdadeiras identidades. Não creio que ninguém possa ou deva se vangloriar disso, é apenas um fato que minha defesa anti-ufanismo impedia de constatar.
Esse preâmbulo todo objetiva justificar as constatações de Minas em mim, eu que sempre quis ser cidadão do mundo, sou de Minas constitutivamente. Posso até pertencer ao mundo todo, mas não antes de pertencer a Minas. Suas montanhas estão em mim tão irrefutáveis quanto a serra da Mantiqueira ou do Caparó ou essas outras pequenas serras anônimas, músculos de meu corpo.
Não somos mineiros o tempo todo, mas somos aqueles que vez por outra ouvimos um chamado do alto das montanhas ao qual não podemos nos omitir.
Enquanto mineiros não fugimos à luta, não tememos empreito. Mineiro embrenha-se em matos, em pântanos, mas resolve o empenho. O mineiro é aquele que se atreve à escuridão das minas para trazer ouro. Isso hoje não é fácil, nossas minas andam escassas e os veios de ouro não estão à mostra. É preciso garimpar muito para alcançar os filões em nossas terras e em nossas profundezas, mas não tenho duvidas, estão lá e como "mineiros eventuais" podemos às vezes alcançá-los.
Montanhas e minas evocam um brado meu, um brado rouco, emudecido no tempo e que teima se anunciar. Já não posso contê-lo, rejeitei-o sob as montanhas de meu peito e interditei todas as estradas que as serpenteavam para alcançar seu cume. Deixei minha morada ao pé da montanha, fortaleza incrustada em pedras, forte de não cair, para sair alpinista até seu topo. Estou saindo das minas, encontrei pequena pedra de ouro, ainda suja, envolta em terra, mas que preciso mostrar sob pena de expatriação. Para muitos será apenas pirita, mas para mim é puro ouro. Muito tempo neguei minha necessidade de escrever, embora sempre o tenha feito desde os primórdios de minha infância e de minha alfabetização. Jamais o havia admitido assim registradamente para mim e para quem o quiser. Razões e recalques me impediram de fazê-lo e me neguei ser de Minas, deixei de perscrutar minha mina mais importante, de encarar sua negrura de cavar suas terras, de levar-lhe a luz de reconhecimento e se admitir mineiro que precisa expor pela escrita as coisas que o aflige, as coisas que julga ver e as coisas que pensa esconder. Redimo-me hoje, do alto da mais alta montanha de Minas do meu pico da bandeira: quero escrever, preciso escrever. Esse sou eu com meus inversos, com minha escrita canhestra diante de tantos mestres. Envergonho-me sim diante deles e de todos os demais, mas me escancaro, me encaro e me admito. Minas de Minas, minas de mim, se misturam e se encontrarão sempre em minhas palavras, meus pontos e minhas reticências.