sexta-feira, 12 de setembro de 2008

JOGOS VITAIS

As cartas estão embaralhadas na tela do monitor, o jogo me é estranho e sem nexo, não me trás o esperado alento cognitivo em que minha mente deixa de vaguear por labirintos dolorosos ou vagabundeantes para centrar-se no jogo e exercitar alguns neurônios. Apossamos-nos de muitos significantes em nossa vida e o free cell me é um desses. Se por vezes o procuro pra descongestionar as preocupações, busco subterfugiamente com ele um encontro com uma diva infantil.

Há dias que não falo com ela, Ina, Ininha, minha adorada filha. Estou precisando que ela jogue as cartas do tarô, coisa que faz magistralmente para mim, pois sempre encontra sentidos que desconheço.

Creio que tinha por volta de oito anos quando destacou um encarte de uma revista. Era um baralho de tarô. A partir de então ela começou a ler cartas para mim. Coitadas de videntes e mestres de qualquer baralho místico, quando chega a Ininha com seu especial baralho, não tenho para mais ninguém.

Percebo agora que os jogos foram maneiras que construímos para estarmos juntos. Jogávamos free cell, um jogo individual que jogávamos magistralmente a dois, a sua mão no mouse, eventualmente a minha sobre a dela, "somente" para indicar uma jogada melhor. Sempre procurava poder oferecer mais alternativas, assim podia abarcar aquela suave mão com a minha, com a devida justificativa.

As leituras do tarô também eram especiais, sentados em roda de dois, ela jogava as cartas pelo chão, pausava seu dedo indicador sobre uma carta, inclinava a cabeça de lado, olhava pro alto, muito alto, sorria me olhando e dizia-me uma sentença extremamente significativa. Mais que suas criativas interpretações a sua existência dava razão para a minha. Obrigado, nada mais consigo dizer.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

RECEITAS DE VIDA

Eu queria uma receita de vida, de felicidade não. A felicidade é para bobos, aqueles bobos da Lispector. Eu não sou tão bobo assim para ousar tanta pretensão. Só quero aprender a viver. Conciliar as demandas entre mim e o mundo. Pacificar o coração e domar a mente revolta. Assossegar sob uma árvore e deixar-me cobrir pelas folhas que caem, uma por vez, sem pressa.

Emudeço quando tenho algo a me dizer, engasgo, coço a cabeça, esfrego o rosto com as mãos e dissipo.

Sinto-me tão modesto, parece tão pouco esse ambicioso desejo. Procuro receitas para jogar fora e ter assunto.

Vejo-me os outros, parecem estar todos bem em suas casamatas. Defendamo-nos! Essa parece uma boa receita desde que não se pergunte de que, ou de quem.

Mandem-me uma receita, uma receitinha simples, sem muito tempero para que eu possa não gostar. Mas ponham pimenta. Por garantia de emoção, acrescentem cebolas. Lágrimas sempre limpam alguma coisa. Misturem algo doce, um pouquinho de mel talvez, porque senão nem chegarei perto. Toda vida precisa de uma isca.

Aprender pescar é outra boa receita. Lancem os anzóis. Cuidado com os tubarões, somos vorazes e sem cautela. Queremos uma receita, só pra poder devolver.

LÓGICA MORTAL

Se sempre é igual a nunca
Nunca é sempre igual

Eu mudo
mudo

Tudo muda o tempo todo
O tempo muda tudo
O todo muda o tempo
A vida muda,
Porque se falar morre!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PRESSÕES CONJUGAIS

Existe pressão maior que uma pressão conjugal? Difícil, você dorme com ela (literalmente) acorda, almoça, vive com ela. Até que ela se satisfaça não tem remédio senão uma rendição incondicional. Desde que soube que eu estaria montando um blog (e começando a escrever alguma coisa, além disso), minha mulher vive a me pressionar para que escreva algo sobre ela. Questiona-me: Não te inspiro nada? Choro de musa.

Não sei dos outros que escrevem, mas não funciono assim, de forma a escrever sobre algo que seja importante ou algo ou alguém que ame muito. Não consigo escrever dentro de uma hierarquia de apreços ou importâncias. Escrevo simplesmente quando a "coisa" vem e tenho condições para expressá-la em palavras. Passou, acabou.

Lembro-me certa vez, estava em uma roda de amigos fazendo serenata para a namorada de um deles. Esse queria uma frase para colocar num bilhete junto a uma flor que deixaria na janela. Falei a frase mais linda do mundo, todos emudeceram diante do impacto da inusitada frase romântica. Pediram-me pra repetir, jamais consegui. Se alguma inspiração me vem, tenho que escrevê-la de imediato sob pena de jamais conseguir me lembrar.

De igual forma não adianta querer forçar-me a um assunto, mesmo que o ache importantíssimo, se o mesmo não me vier com gratuidade. Não consigo falar sobre ele com alguma propriedade se não for de forma espontânea e natural. Isso me escapa completamente ao controle.

Então, sob pressão redijo essas linhas reafirmando à minha querida esposa o quanto ela é importante em minha vida e agradecer-lhe todo o apoio que dela recebo. Desculpo-me por não conter as flores e a poesia que ela merece e almeja. Sem dúvida as semeou por mim, eu é que andei muito estéril para fazê-las germinar, mas algo do que ela espera há de vingar. Há tempo e solo.

AMIZADES E CATIVIDADES

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Essa é uma célebre frase da raposa ao pequeno príncipe. Não sei se concordo com a raposa. Bem, não concordo com a raposa. Para mim a amizade é a forma mais sublime de amor e por isso libertadora, tudo que existir aquém disso ainda não é amizade.

Na amizade nunca damos a merecida e suficiente importância aos amigos e mesmo assim permanecem conosco. Na catividade tudo o que damos é sempre pouco. A catividade é cobrada em quilômetros de atenção, a amizade se satisfaz com milésimos de lembrança.

Sinto-me livre de meus amigos. Tanto que passo muito tempo sem dar menor notícia e depois apareço com a maior cara de pau como se tivéssemos nos encontrado ontem. Pra mim, de fato é assim, apesar de ficar "distante" muito tempo, meus amigos permanecem sempre comigo.

Disse uma vez, que havia aprendido a gostar das pessoas sem esperar que correspondessem à minhas expectativas. Na verdade, estou aprendendo a fazer isso, pretendo gastar pelo menos essa existência nesse empreito. Já tive amigos que não eram amigos e amigos a quem custei reconhecer, coisa que é só possível com muito, muito tempo.

O tempo é o maior juiz das amizades, faz ruir as pretensas e edifica as verdadeiras. Mas as amizades não nascem assim... grandes, começam por uma simpatia, um respeito e uma admiração. A amizade sementinha é extremamente delicada, precisa do acalanto do silêncio e do embalo da compreensão.

Se enquanto semente, ou jovem planta, ainda é frágil, a amizade já amadurecida é quase inabalável. Ressalvo o quase como um remédio que tomo antecipadamente aos silogismos.

Não sou bom em amizades tanto que tenho poucas. Por isso não tenho nenhuma pretensão em ditar cátedra, apenas expresso essas minhas crenças, eu que me decidi um falante pela escrita.

Eu tenho saudade de meus amigos justamente quando os encontro. Não queria ter estado longe, mas enquanto estava não me apercebia disso. Quando estou junto, acho maravilhoso. Juro a mim mesmo que não distanciarei tanto tempo. Depois vou embora e me esqueço. Perco-me nas merrecas cotidianas e na enorme confiança de que estão sempre à minha espera. Essa não me parece uma atitude reta e louvável, mas é assim que me ocorre. Algo de sádico e punitivo, que me pertence e que me infrinjo em redenção à culpa de sentir tanto prazer em estar com vocês, meus amigos.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

MISTÉRIO TERCEIRIZADO

Por Flávius Mondragon

O meu gozo está em não me fazer conhecer, mais do que isso está no que desconhecem de mim. Esse meu mistério terceirizado como forma de existência se apoderou tanto de mim que me desconheci. Nas pretensas tentativas de não deixar-me conhecer aos outros, deixei de conhecer a mim mesmo. E vivi muito tempo na ilusão consoladora de ser um auto-buscador, mas o que verdadeiramente fazia era me esconder nos escombros do orgulho, da arrogância e da pretensão.

Hoje o que tenho sobre mim é apenas uma percepção mais sentida que racionalizada, algo um tanto indefinível nas minhas valorizadas intelectualizações. Vivi um grande engôdo na saga de minha vida. Escondi-me o tempo todo. Me perdi nesses labirintos de-mentes. Quando dei por mim, numa fulgás percepção, não me sabia, era um estranho.

Não se deve, contudo, se deixarem iludir pela conjugação no passado, ela ocorre pela simples presunção ou pelo ansioso desejo de que essa constatação de desconhecimento e perda, seja por si só o inicio de um encontro de mim comigo. Um encontro, como profundamente se pode expressar essa palavra, é algo que não passa com o tempo, pois o tempo apenas reafirma sua perenidade além dos espaços cronológicos que se interpõem entre aqueles cujas almas se reconheceram.

Entretanto coloca-se aqui uma condição: não se reconhece o outro antes de reconhecer a si próprio. Vejo me então completamente sozinho pois ruem as construções que imaginei ter erguido com algumas pessoas. Elas de fato não existem, são apenas ilusões de ilusões que julguei perceber nas pessoas, nada mais eram que reflexos de quimeras construídas sobre personagens que personifiquei nos corpos de algumas pessoas, entre as quais, algumas ousei chamar de amigos.

Sou um mistério desgastado, descolorido pelo guardado num báu inominado, sem identidade. Um mistério cheio de sem segredos, que se abarrota e não se cabe.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

EFEITOS DA BALA

Por Fernando Montesquieu

Um pequeno pedaço de alegria enrolado em um papel colorido, muitos sabores, e muita magia. Essa iguaria infantil tem desafiado o tempo e se mantido no topo das guloseimas. Qual criança rejeita a oferta de uma bala? É Claro que ela fêz um upgrade, usa roupas de moda e procura estar elegante para não cair do gosto da garotada. Entre novos sabores, formas e fragrâncias se mantêm firme a povoar o universo infantil.

Não saberia dizer com propriedade seus significados de hoje, mas com as devidas adaptações não parecem tão distantes daqueles que existiam nos idos de minha infância. Não tínhamos a fartura de ofertas que existe hoje, naqueles tempos ganhávamos balas muito raramente, normalmente uma vez por mês quando do sortimento mensal da dispensa.

Morávamos na roça, num desses rincões à beira de um riacho que provia a casa de água e os dias de verão de refrescantes banhos. A estrada que levava à cidade serpenteava a serra que ficava à distância da vista, mesmo do outro lado da vida. No sagrado dia das compras, meu pai antecipava sua madrugada e eu calçado de expectativas ficava ao pé da porteira do curral soltando bezerros na hora da ordenha. Meu pai fumava seu cigarro de palha e eu as brumas da madrugada.

Antes da graça do sol, com o cavalo já selado, meu pai se perdia cedo de meus olhos, indo na direção da cidade, deixando o tropel do cavalo ecoando por toda a manhã. Crescia a expectativa à medida que caminhava o dia. Entre um afazer e uma brincadeira, sentávamos à soleira da porta e deitávamos o olhar na serra divisando o percurso da estrada, procurando distinguir algum cavaleiro.

Como o tardar das boas coisas e após muitos olhares lá vinha ele com os alforjes carregados. Após descarregar todas as compras, meu pai nos olhava desentendido aguçando a espera. Seu olhar se abria, destacava do bolso um saquinho de papel e me estendia com a expressa recomendação de dividir por igual com meu irmão aquele precioso conteúdo. Não achava isso justo, eu era o mais velho e maior e por certo eu merecia duas ou três balas a mais. Entretanto engolia essa injustiça para realizar a sublime tarefa de dividir prazeres. Com o cerimonial solene de eventos sagrados, realizava a divisão. Da parte que me cabia guardava um pouco sob a roupa da cômoda, na gaveta mais alta, longe do alcance de outras furtivas mãos. Uma pequena parte ia para os bolsos da calça e uma delas permanecia em minha mão e se desenrolava sob os ligeiros dedos. A saliva saltava da língua até que a bala percorresse aquele imenso percurso de minha mão, à altura do tórax, até minha umedecida boca.

Daqueles sabores restam saudosas e deliciosas lembranças que as balas de hoje, por vezes ainda me permitem vislumbrar. Creio que ainda farão isso com as crianças que terão amanhã, as lembranças de hoje.

Eu estava em uma reunião, todos sérios sentados à mesa. Uma pessoa entra. Saquinho de papel na mão, saca dele um monte de balas que vai distribuindo entre os presentes. As fisionomias mudam, semblantes se abrem, sorrisos afloram. Um desconfiado olha os demais de soslaio como se escondesse deles a intenção de se apoderar da bala. Outro simula algum desdém, mas pega a bala, aperta-a entre os dedos e coloca no bolso do peito.

O clima sério retorna e com ele os adultos e todos os seus encargos, mas por um instante deixaram voltar suas crianças talvez esquecidas, talvez negligenciadas. Mas voltaram ali naquele segundo... sob o efeito da bala.