terça-feira, 2 de setembro de 2008

EFEITOS DA BALA

Por Fernando Montesquieu

Um pequeno pedaço de alegria enrolado em um papel colorido, muitos sabores, e muita magia. Essa iguaria infantil tem desafiado o tempo e se mantido no topo das guloseimas. Qual criança rejeita a oferta de uma bala? É Claro que ela fêz um upgrade, usa roupas de moda e procura estar elegante para não cair do gosto da garotada. Entre novos sabores, formas e fragrâncias se mantêm firme a povoar o universo infantil.

Não saberia dizer com propriedade seus significados de hoje, mas com as devidas adaptações não parecem tão distantes daqueles que existiam nos idos de minha infância. Não tínhamos a fartura de ofertas que existe hoje, naqueles tempos ganhávamos balas muito raramente, normalmente uma vez por mês quando do sortimento mensal da dispensa.

Morávamos na roça, num desses rincões à beira de um riacho que provia a casa de água e os dias de verão de refrescantes banhos. A estrada que levava à cidade serpenteava a serra que ficava à distância da vista, mesmo do outro lado da vida. No sagrado dia das compras, meu pai antecipava sua madrugada e eu calçado de expectativas ficava ao pé da porteira do curral soltando bezerros na hora da ordenha. Meu pai fumava seu cigarro de palha e eu as brumas da madrugada.

Antes da graça do sol, com o cavalo já selado, meu pai se perdia cedo de meus olhos, indo na direção da cidade, deixando o tropel do cavalo ecoando por toda a manhã. Crescia a expectativa à medida que caminhava o dia. Entre um afazer e uma brincadeira, sentávamos à soleira da porta e deitávamos o olhar na serra divisando o percurso da estrada, procurando distinguir algum cavaleiro.

Como o tardar das boas coisas e após muitos olhares lá vinha ele com os alforjes carregados. Após descarregar todas as compras, meu pai nos olhava desentendido aguçando a espera. Seu olhar se abria, destacava do bolso um saquinho de papel e me estendia com a expressa recomendação de dividir por igual com meu irmão aquele precioso conteúdo. Não achava isso justo, eu era o mais velho e maior e por certo eu merecia duas ou três balas a mais. Entretanto engolia essa injustiça para realizar a sublime tarefa de dividir prazeres. Com o cerimonial solene de eventos sagrados, realizava a divisão. Da parte que me cabia guardava um pouco sob a roupa da cômoda, na gaveta mais alta, longe do alcance de outras furtivas mãos. Uma pequena parte ia para os bolsos da calça e uma delas permanecia em minha mão e se desenrolava sob os ligeiros dedos. A saliva saltava da língua até que a bala percorresse aquele imenso percurso de minha mão, à altura do tórax, até minha umedecida boca.

Daqueles sabores restam saudosas e deliciosas lembranças que as balas de hoje, por vezes ainda me permitem vislumbrar. Creio que ainda farão isso com as crianças que terão amanhã, as lembranças de hoje.

Eu estava em uma reunião, todos sérios sentados à mesa. Uma pessoa entra. Saquinho de papel na mão, saca dele um monte de balas que vai distribuindo entre os presentes. As fisionomias mudam, semblantes se abrem, sorrisos afloram. Um desconfiado olha os demais de soslaio como se escondesse deles a intenção de se apoderar da bala. Outro simula algum desdém, mas pega a bala, aperta-a entre os dedos e coloca no bolso do peito.

O clima sério retorna e com ele os adultos e todos os seus encargos, mas por um instante deixaram voltar suas crianças talvez esquecidas, talvez negligenciadas. Mas voltaram ali naquele segundo... sob o efeito da bala.

5 comentários:

Rosana Tibúrcio disse...

Lindo!!
Saudade me deu da "bala barata". Conheceu? Não há igual. Nem a chita ganha!
Lindo dia com saber doce de boas lembranças!!

Esse é o Fernando, então...

René Rizzi disse...

Tinha a bala cascalho, tão dura feito pedra, ficavamos um tempão com ela na boca. Ia se dissolvendo devagarinho enchendo o tempo de delicias.
Esse é o Fernando, um saudosista inveterado que se atualiza com saudades mais novas e mais recentes.

Rosana Tibúrcio disse...

Era a mesma bala, chamada de barata ou cascalho, embrulhada num papel tipo papel de seda...
aiiiiii! Saudades me deu!

Anônimo disse...

E tinha a bala Soft! Terror das guloseimas para as mães, já que muitas crianças engasgavam com ela...
rs

Minha raiva por ti aumentou diante de um texto tão bonito, genis.
hehe

René Rizzi disse...

Rafa, que surpresa, obrigado pela visita, muitas balas para adoçar sua vida.

pode ficar com raiva (contextualizada) à vontade.